É comum as pessoas gostarem de ouvir mentiras, desde que lhes digam o que gostariam de ouvir. Por isso, quanto mais mentimos e evitamos falar o que pensamos, mais amigos nós temos. Nada melhor do que ter muitos inimigos!
Ao General Figueiredo, minha eterna simpatia.
Jurema Cappelletti
- "preferia cheiro de cavalo a cheiro de povo"
- "Eu prendo e arrebento".
- "daria um tiro na cabeça se tivesse de sobreviver ganhando salário mínimo."
- "estilo de alguém que se definia como "rude e franco"
- "Para não repassar a faixa presidencial a José Sarney, que considerava "um traidor", deixou o palácio pela porta dos fundos."
- "Quero que me esqueçam".
Em seu artigo, Augusto Nunes se refere ao livro Tempos de Gangorra, escrito por Saïd Farhat sobre João Baptista Figueiredo.
Um homem a ser explicado
- Augusto Nunes -
E explicar João Baptista Figueiredo, o último e o mais relutante dos generais a ocupar o poder, e o que Saïd Farhat, que conviveu estreitamente com o presidente no Planalto, se põe a fazer em Tempos de Gangorra
"Esses, pelo menos, não saíram daqui
dizendo as coisas diferentemente do que conversamos", comentou
com um assessor o general João Baptista de Oliveira Figueiredo, chefe do
Serviço Nacional de Informações do governo Ernesto Geisel, no fim da tarde de
31 de janeiro de 1978.
"Esses" eram Guilherme Figueiredo e Saïd Farhat. E
"as coisas que saíram dizendo" foram as respostas dadas pela dupla às
perguntas dos jornalistas interessados em saber o que haviam conversado por
mais de uma hora o militar já escolhido para encerrar o ciclo dos generais
iniciado em 1964, o escritor e teatrólogo que acumulava o posto de irmão mais
velho do futuro presidente e o risonho acriano que suspendera as atividades de
empresário e jornalista para dirigir a Embratur. O resgate do episódio é um dos
momentos mais saborosos e reveladores de Tempo de Gangorra (Editora
Tag&Line; 472 páginas; 45 reais), em que Saïd Farhat ,
como informa o subtítulo, apresenta uma "visão do processo
político-militar no Brasil de 1978
a 1980".
O confronto entre
o que ouviram os jornalistas e o que escutaram as paredes do gabinete
no 4º andar do Palácio do Planalto sugere que, se gostou da lealdade dos
visitantes, Figueiredo gostou mais ainda de como as coisas foram ditas e,
sobretudo, do que os visitantes deixaram de dizer. A imprensa ficou sem saber,
por exemplo, que Guilherme, então funcionário da Embratur, só invocou a
necessidade de tratar de questões ligadas ao turismo para conseguir incluir na
agenda a audiência, que em princípio duraria quinze minutos, em que apresentou
Farhat ao irmão. Eles combinaram que Farhat tentaria, com a exposição de ideias
e conceitos inseparáveis do liberalismo clássico, ajudar a pavimentar o caminho
da abertura política que seria percorrido pelo quinto (e último) presidente do
regime militar. A conversa a três invadiu sem cautelas assuntos perigosos
demais para frequentar sem disfarces entrevistas coletivas.
Farhat confirmou que havia sugerido ao general alguns
retoques na imagem. Mas omitiu o comentário de Figueiredo quando o aconselhou a abandonar as meias verdes
que terminavam no meio da canela: "Qualquer dia, vocês vão querer que eu
ande por aí de collant".
No noticiário do dia seguinte, graças à habilidade de um
diplomata vocacional, clarins soaram como flautas, bumbo virou marimba e a
batucada ficou parecida com um minueto. Reinterpretado por Farhat, Figueiredo
pareceu bem melhor que na partitura original. O futuro presidente encontrara
seu mais perfeito tradutor, mas Farhat soube disso só no segundo encontro, em 8
de junho de 1978, quando foi convidado ajuntar-se à equipe do candidato.
Primeiro como "assessor polivalente", depois como porta-voz do
presidente eleito, enfim como ministro da Comunicação Social do chefe de
governo, Farhat conviveu intensamente, durante dois anos e meio, com "o
homem que cumpriu o juramento de fazer deste país uma democracia".
"A devolução
do poder aos civis ocorreu graças à teimosia de Figueiredo",
garante Farhat. A declarada simpatia pelo personagem às vezes induz o autor a
enxergar no desbocado oficial da Cavalaria um audaz cavaleiro andante. O olhar
é amistoso, mas sempre honesto. O livro comprova que só um turrão incurável poderia completar o trabalho de desmonte
iniciado por Geisel, outro teimoso de nascença. Os dois enfrentaram
zonas de turbulência forjadas pela involuntária parceria entre
ultraconservadores fardados incapazes de admitir a agonia do regime e oposicionistas sem paciência para
avaliar o tamanho do perigo a um palmo do nariz. A anistia de 1979, por
exemplo, descontentou a esquerda e açulou o ânimo beligerante da linha dura. E,
à exceção de Tancredo Neves, revela
Farhat, ninguém aceitou apertar a "mão estendida" por Figueiredo num
dos primeiros discursos como herdeiro do trono.
Pena que Farhat não tenha detalhado as ameaças anônimas
de que foi vítima, nem identificado claramente os liberticidas que seguiram em ação até a restauração da democracia.
Mas os fatos que narra confirmam que, efetivamente, ele viu "o bastante
para perceber quanto estivemos arriscados, mais de uma vez, a tudo
perder". Farhat diz que lhe coube "verbalizar a vocação democrática do presidente e, sempre que
encontrava caminho aberto, aprofundar razões, reduzir a escrito seu pensamento
político, muitas vezes inexpresso". Fez muito mais do que isso. E foi
muito além da repaginação que trocou João Baptista de Oliveira Figueiredo por
João Figueiredo, demitiu os pesadíssimos óculos e, claro, mudou tanto a cor
quanto o comprimento das meias.
Graças à insistência de Farhat, o oficial do Exército que
chefiara em silêncio o Gabinete Militar de Emílio Médici e o SNI de Ernesto
Geisel começou a conversar com jornalistas – e o país descobriu que o general
caladão camuflava um presidente que falava até demais. Recorrendo a complicadas
acrobacias semânticas, Farhat frequentemente teve de minimizar, traduzir ou
revogar declarações que consolidaram o
estilo de alguém que se definia como "rude e franco" . Não foi fácil explicar por que o
presidente preferia cheiro de cavalo a cheiro de povo. Ou por que daria um tiro na cabeça se tivesse de
sobreviver ganhando salário mínimo. Ou, ainda, por que Figueiredo,
depois de prometer a ressurreição da democracia num épico pronunciamento
redigido por Farhat, brindou com a advertência famosa o jornalista que lhe
perguntara o que faria se alguém se opusesse ao que havia prometido: "Eu prendo e arrebento".
Somados os governos aos quais serviu e o que chefiou durante
seis anos, ninguém ficou mais tempo no Palácio do Planalto do que Figueiredo.
Nunca foi feliz. Aceitou a contragosto a indicação para a Presidência, que
qualificou sinceramente de "missão irrecusável". Para não repassar a faixa presidencial a José Sarney, que
considerava "um traidor", deixou o palácio pela porta dos fundos.
Longe do poder, enfurnou-se num apartamento no Rio de onde saía apenas para os
fins de semana no sítio em Petrópolis ou para caminhadas solitárias no calçadão
do Leblon. Quando percebia que alguém o reconhecera, evitava a interceptação
com o mesmo drible: "Sou parecido com quem você está pensando, mas não sou
ele". Até morrer, em 1999, perseguiu o desejo manifestado na entrevista
concedida a Alexandre Garcia semanas antes de encerrar o mandato: "Quero que me esqueçam".
Saïd Farhat preferiu esquecer o pedido, ouvir o apelo da história e lembrar o
presidente que conheceu. O retrato produzido pelo livro ajuda a iluminar o
começo da última etapa da viagem para longe das trevas.
*
SÓ OS CANALHAS NÃO RECONHECEM AS QUALIDADES DE CARÁTER DO EX-PRESIDENTE FIGUEIREDO.
ResponderExcluirTOM
TOM, as pessoas sempre me olhavam torto quando eu dizia que simpatizava com o Figueiredo. Prefiro um Figueiredo a gente falsa.
ResponderExcluir